O Drex, a versão digital do real anunciada pelo Banco Central, pode facilitar o acesso dos brasileiros ao crédito e à realização de transações, como a compra de um veículo ou imóvel, por exemplo. Por outro lado, especialistas disseram ao Brasil 61 que a moeda digital tende a dar ao Estado maior controle sobre a vida das pessoas, o que deve ser observado com atenção.
Raphael Moses, professor do Instituto Coppead da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca que o Drex nada mais é do que o real em formato digital. "A diferença entre a versão física e a digital da moeda é só a plataforma", pontua.
O valor também não muda. Ou seja, um real em espécie terá o mesmo valor de um Drex. Também não se pode confundir o real digital com uma criptomoeda, como o Bitcoin, por exemplo. O Drex será controlado e emitido pelo Banco Central. Já uma criptomoeda tem seu controle descentralizado, sem um gestor principal.
Segundo os especialistas, a tecnologia por trás do Drex vai simplificar, agilizar e baratear operações que fazem parte do dia a dia dos cidadãos, como a compra e venda de um carro. Hoje, esse processo exige idas e vindas ao cartório, banco e órgãos de trânsito. Além do tempo e custo gastos na transação, há insegurança por parte do vendedor e do comprador sobre a operação. Com o real digital, isso muda, diz Moses.
"Com a utilização dos contratos inteligentes – e aí o Drex tem um papel fundamental –, esse processo vai ser praticamente extinto. Tudo vai ocorrer de forma instantânea. Imagina que eu quero comprar o carro e eu tenho Drex na minha conta. Eu faço a transferência do Drex e esse contrato inteligente, ao identificar o pagamento da moeda digital, transfere de forma automática a titularidade do carro para o meu nome. É um processo muito menos custoso e muito mais rápido e diminui a insegurança entre as partes", avalia.
Especialista em direito digital, Christiano Sobral diz que o Drex pode melhorar o acesso dos brasileiros ao crédito, por exemplo. "O Drex traz muita coisa do contrato inteligente, que é, por exemplo, você poder amarrar um financiamento e lastrear ele em cima de papéis. Você pega o financiamento e bota como garantia os papéis que você tem do Tesouro, por exemplo. E aí, se você não pagar, automaticamente [o banco] já tira do Tesouro", ilustra.
Rastrear o dinheiro usado para o crime também é uma vantagem do real digital, explica o especialista. "Se você pensar, por exemplo, que circula moeda por conta de tráfico de entorpecentes, compra de armas e coisas do gênero, [com o Drex] você passa a ter um certo controle."
A chegada do Drex, contudo, não traria só notícias positivas para a população. Há quem olhe com preocupação para o real digital. O principal motivo? A centralização completa das informações financeiras dos cidadãos em uma única instituição. É o que explica Sobral.
"O meu receio é o controle. Da mesma forma que cliques dizem muito sobre você e possibilitam à inteligência artificial construir um perfil seu e te manipular, te colocar numa bolha só te transmitindo aquilo que você gosta e te isolando do resto, o que você gasta dá o mesmo nível de informação ou até mais, fala muito sobre você. A moeda digital do Banco Central dá esse poder de conhecer o cidadão além do normal", aponta.
O exemplo do Yuan digital – moeda chinesa similar ao Drex – costuma vir à tona para exemplificar como o poder conferido aos governantes com a centralização monetária pode ser prejudicial aos cidadãos. As autoridades chinesas pensaram em testar a imposição de um prazo de validade ao Yuan digital. Ou seja, que o valor expirasse caso não fosse utilizado dentro de um período estabelecido.
O "dinheiro perecível" tornaria possível a um governante estimular a economia por meio do consumo, por exemplo, tirando a liberdade dos indivíduos sobre o próprio dinheiro, alerta Sobral. "No futuro em que todo mundo tivesse moeda digital, essa ferramenta de controle para estimular a economia ou soltar a economia seria muito mais rápida. E aí o governo pode usar como quiser", lembra.
Para Moses, a preocupação com o controle estatal por meio do Drex é válida, mas ele acredita que o Banco Central pode trabalhar para se autolimitar. "O Banco Central, inclusive, foi bem taxativo nesse sentido de que essa é uma preocupação deles, até para tranquilizar a população de que eles querem continuar sem ter esse controle. O objetivo do Banco Central não é ter o controle do que cada pessoa faz em termos transacionais. O objetivo é apenas facilitar, desburocratizar os processos", acredita.
Segundo o especialista, a confiabilidade do Drex será fundamental para que o real digital caia no gosto da população assim como o Pix. "Se tiver qualquer dúvida em relação a isso, as pessoas não vão aderir", completa.
Mas se já existe o Pix, para que o Drex? A dúvida é comum. Segundo o próprio Banco Central, o Pix é um meio de pagamentos e transferências instantâneas. Ele continuará existindo após o real digital entrar em vigor.
O Drex, por sua vez, é a própria moeda brasileira, só que em formato digital. A ideia é que o real digital vá além das transações que podem ser feitas com dinheiro em espécie ou por meio da internet, facilitando, por exemplo, operações por meio dos smart contracts (contratos inteligentes). Toda vez que o cidadão precisar condicionar uma operação, ele usará a moeda digital.
Assim, na compra e venda de um imóvel, por exemplo, garante-se que a transferência da propriedade do bem vai ocorrer ao mesmo tempo em que o dinheiro é depositado.
Ainda em fase de testes, o real digital deve estar disponível para a população no fim de 2024
Mais rastreabilidade e a possibilidade de reverter as operações. Na opinião do professor e advogado especializado em Direito Bancário e Meio de Pagamentos, Marcelo Godke, a tecnologia apresentada para o Drex, versão digital do real apresentada pelo Banco Central e em fase de testes, permite deixar um rastro em cada local que a moeda circular.
“Cada lugar que passar a moeda a gente vai saber o que acontece, então, a depender do algorítimo e da programação que for feita na moeda, poderá ser mais fácil recuperar um dinheiro que, eventualmente, teria sido enviado de maneira equivocada, de maneira errada ou até mesmo desviado de uma eventual conta”, explica.
De acordo com o especialista, com a autotutela — possibilidade de controlar os próprios atos — as pessoas dependeriam menos do poder judiciário pra tentar reverter uma operação fraudulenta. “Existem poucas possibilidades de autotutela, em tese eu teria que recorrer sempre ao poder judiciário pra praticamente tudo. E a gente sabe que isso é muito difícil, mas se existe uma moeda em que eu possa reverter a transação feita, então essa autotutela ela é mais facilitada — e eu dependeria menos do poder judiciário”, avalia.
Para Rafael Guazelli, advogado especialista em direito tributário, a ideia da utilização dessa moeda digital é simplificar as operações. “Numa negociação, por exemplo, de um veículo, as operações para o pagamento ocorreriam de forma simultânea e a partir do pagamento. Já seria feita a transferência automática da propriedade do veículo enquanto que, atualmente, você primeiro transfere o bem e depois paga. Ou de forma contrária, enquanto que através do Drex, isso seria possível fazer de forma simultânea”, acredita.
Segundo o especialista, a facilidade nas transações pode garantir mais segurança. “O Drex está respaldado no Banco Central o que dá maior confiabilidade e segurança nas transações, mas não só isso. A grande vantagem é que vai permitir que os pagamentos ocorram de forma imediata, direta, sem a presença de intermediários. Isso vai agilizar o processo de pagamento”.
Ele acrescenta que o Drex funcionará também na sistemática do blockchain — uma espécie de banco de dados —, assim como as criptomoedas, mas com funções diferentes que permitem mais segurança. “Há vários sistemas criptografados que dificultam o acesso às informações dos envolvidos nas transações. Com isso, é possível dizer que nós teremos uma segurança maior na utilização do Drex do que na utilização do dinheiro em espécie ou da transação bancária”, ressalta.
Guazelli ainda vê a possibilidade das empresas criarem novos modelos de negócios implantando plataformas que podem facilitar as transações de compra e venda de forma automática. “Temos também a questão da gestão financeira, porque essa moeda digital ela pode ser utilizada para gerenciar e coordenar um fluxo de caixa de forma concentrada evitando que tenha que se lidar com várias contas bancárias”, reforça.
O economista do Banco Central, Fabio Araújo, coordenador da iniciativa, disse em uma live semanal da instituição, que o real digital foi criado para facilitar o acesso aos serviços financeiros e com maior segurança.
“Quando você tem um valor registrado e acessível de maneira simples e confiável, você abaixa o custo e você democratiza o acesso aos serviços financeiros. Hoje as pessoas fazem o pagamento com facilidade utilizando o PIX. E a gente quer que com o real digital as pessoas possam fazer um empréstimo com mais facilidade — ou ter uma opção de investimento mais acessível, um seguro mais fácil. A gente quer trazer esses produtos financeiros pra mão das pessoas”, informa.
O professor e advogado especializado em Direito Bancário e Meio de Pagamentos Marcelo Godke diz que a possibilidade de reverter operações com mais facilidade também pode ser um problema.
“Isso não pode acontecer o tempo todo porque isso gera uma instabilidade muito grande nas transações comerciais. Então se eu pago hoje e amanhã eu quero o dinheiro de volta e simplesmente vou lá e aperto um botão isso também vai gerar um efeito muito ruim para a economia”. Para ele, são necessários mais detalhes sobre o funcionamento do sistema.
“A gente precisa entender exatamente o que é que vai poder se fazer por meio desse algoritmo e desse sistema, que na verdade é tudo software. Saber quais os limites e o que é que vai poder se fazer ou não. Mas ao que parece, isso não foi anunciado ainda”, destaca.
O advogado alerta que o fato de as operações serem registradas pode ser muito bom para o Estado controlar as atividades ilícitas, controlar as atividades voltadas para lavagem de dinheiro, cobrança de tributos. Mas alerta que também pode aumentar a dependência com relação ao Estado
“Se tivermos uma alteração de regime político no Brasil — e deixarmos de ser uma democracia —, o Estado vai poder utilizar essa moeda virtual para controlar a vida do dia a dia das pessoas. Desde que o Estado garanta a liberdade para eu usar o dinheiro como eu quiser, isso não vai ter problemas, mas isso vai depender de uma manutenção do estado democrático de direito no Brasil”, observa.
O especialista acredita que existem outros fatores que devem ser levados em consideração em relação ao uso da nova moeda digital. Para ele, mesmo o Banco Central dizendo que a moeda terá o mesmo valor que o real, o mercado pode tratar isso de forma diferente.
“Oficialmente é uma paridade de 1 pra 1, mas se houver uma busca muito grande por essa moeda ela pode se tornar mais cara do que a moeda física”. O professor ainda ressalta: “Existe uma teoria na economia, um conceito, que fala que a moeda ruim afasta a moeda boa. Então a gente precisa entender o que vai ser considerado moeda ruim e o que vai ser considerado moeda boa — e o tempo vai dizer”, salienta.
Ainda em fase de testes, o real digital deve estar disponível para a população só no fim de 2024. O Banco Central já habilitou 16 consórcios para desenvolverem ferramentas e instrumentos financeiros que serão testados no novo sistema. Previstos para começarem em setembro, os consórcios testarão a segurança e a agilidade entre o real digital e os depósitos tokenizados (ativos reais convertidos em digitais) das instituições financeiras.
De acordo com a instituição financeira, o conceito visual do Drex se encaixa no contexto da agenda de modernização tocada pelo Banco Central — e que tem como premissa a utilização de tipografia e elementos gráficos que remetem ao universo digital.