O que fazer nos primeiros mil dias de vida da criança? Avanços na neurociência mostram que, nessa fase, que vai da gestação aos primeiros dois anos do bebê, novas conexões neuronais se formam na velocidade ideal. É quando as crianças aprendem, pensam e lidam com as diversas situações que as envolvem.
A partir daí, elas precisam continuar sendo estimuladas e acolhidas para que consigam chegar ao fim da chamada primeira infância (aos seis anos) capacitadas para enfrentar o mundo. “Tudo se decide antes dos seis anos de idade. Se quisermos que a criança tenha uma boa nutrição, um bom desempenho na escola, um futuro melhor, inclusive em termos de renda, a gente tem que investir nos primeiros anos de vida”, alerta a pediatra e especialista em Saúde do Unicef para o Semiárido, Tati Andrade.
“É nesse período que o cérebro se desenvolve. As crianças adquirem hábitos e até traumas que terão repercussão para a vida inteira”, continua a pediatra. E cuidar da saúde, por exemplo, é uma das formas que garantem que meninos e meninas tenham mais chances de sobrevivência. E tudo isso acontece ali, nos primeiros cuidados. Teste do pezinho, alimentação saudável e cartão de vacinação atualizado são apenas alguns desses cuidados.
Mas os números mostram outra realidade. Tati Andrade sinaliza um crescimento, nos últimos anos, em casos de doenças consideradas já erradicadas, como o sarampo, que atinge principalmente crianças menores de cinco anos de idade – e pode até matar.
Segundo dados do Ministério da Saúde, o último caso registrado da doença havia sido em 2015. Anos depois, com o surgimento de diversos fatores – entre eles, o de movimentos contra vacinas e de fake news –, houve surto do vírus em diversas unidades da federação. Em 2018, foram mais de dez mil casos em 11 estados.
No ano passado, foram confirmados pela pasta 18.203 casos da doença. Até setembro de 2019, quatro pessoas já tinham morrido por conta do vírus – sendo um adulto e três crianças, nenhum deles imunizado pelas vacinas.
“Dentro da história no Brasil, conseguimos reduzir a mortalidade infantil. Se formos analisar o porquê, com certeza um dos carros-chefes é a diminuição de doenças que se previnem pela vacinação”, relata a chefe nacional de Saúde do UNICEF, Cristina Albuquerque.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre dois e três milhões de pessoas são salvas todo ano pela imunização por meio de vacinas. A falta dessa imunização foi apontada pelo órgão como uma das dez causas que mais acarretou vítimas no ano passado.
“O sarampo voltou porque o Brasil não cumpriu o dever de casa. Historicamente, temos uma boa cobertura vacinal, mas o país relaxou há alguns anos e foi onde se abriu uma janela para a reintrodução de doenças anteriormente eliminadas no território nacional”, lamenta Cristina.
Ela conta que diversos órgãos e especialistas, entre eles o Ministério da Saúde, tentam identificar as causas do crescimento do número de famílias que não vacinam as crianças. “A gente sabe que não é um fator só. As fake news e o movimento antivacinas podem ter contribuído? Podem, mas a gente não sabe ainda em que proporção. Estamos em fase de estudos”, diz.
Saúde
Assim como o sarampo, outra doença que vem crescendo entre as crianças é a sífilis congênita, transmitida da mãe para a criança durante a gestação. Em 2018, segundo o último Boletim Epidemiológico da Saúde, foram registrados 26,2 mil casos no Brasil – sendo 241 mortes pela doença. No Nordeste, os casos atingiram 7.877 crianças (77 morreram nesse período). No Norte, foram 2.213 casos, sendo 27 crianças mortas.
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O principal meio de contágio da doença pela mãe é pelo sexo desprotegido com alguém infectado. “E é possível fazer o teste rápido da sífilis e tratar essa infecção para que o bebê não nasça com a doença”, lembra Tati Andrade.
As recomendações do ministério são de testes no primeiro e terceiro trimestre de gestação e no momento do parto ou em casos de aborto. A sífilis congênita pode se manifestar logo após o nascimento, durante ou após os primeiros dois anos de vida da criança. Entre as complicações da infecção, estão aborto espontâneo, parto prematuro, má-formação do feto, surdez, cegueira, deficiência mental e morte ao nascer.
“Esse cuidado é uma decisão, uma atitude do principal cuidador ou cuidadora responsável pela criança, é do pai e da mãe”, afirma Cristina Albuquerque.
Nas últimas décadas, como comentado por Cristina, o Brasil havia reduzido significativamente o índice de mortalidade infantil (até um ano) e na infância (até cinco anos). Mas em 2016, o País voltou a apresentar taxas elevadas de mortes.
Outros fatores, como obesidade infantil, pobreza, raça e etnia, também têm feito esses números subirem. No Brasil, meninos e meninas indígenas, por exemplo, têm 2,5 vezes mais risco de morrer antes de completar um ano do que outras crianças brasileiras.
“É incrível a fragilidade e a vulnerabilidade das comunidades indígenas, tanto nas terras deles quanto nos grandes centros urbanos, para onde eles se movimentam”, constata a especialista em Proteção à Criança do UNICEF para a Amazônia, Débora Madeira. “E quando eles se movimentam, encontram dificuldades como línguas diferentes e formas de viver que não coadunam com a vida deles. Então, eles ficam ainda mais vulneráveis”, diz.
Débora defende que haja mais atenção a essas comunidades e dados específicos que retratem verdadeiramente a realidade dessa público. “Estamos criando uma forma de trabalhar com eles para que possam realmente responder essas necessidades, que são muito específicas”, adianta.
Semana do Bebê
A Semana do Bebê é uma forma de levar para o Semiárido e a Amazônia Legal a discussão de temas como mortalidade infantil, aleitamento materno, gravidez na adolescência, formação de vínculo e estimulação do bebê, por meio da organização de oficinas, atividades lúdicas e culturais.
“Queremos que os municípios usem os recursos disponíveis para realizar essas atividades. Precisamos dessa integração: saúde, educação e assistência social. Para atender a primeira infância, precisamos dessa intersetorialidade”, lembra a pediatra Tati Andrade.
Ela orienta que essa semana tenha duração de pelo menos cinco dias dentro dos municípios, sendo uma atividade por dia. Uma dessas, ela destaca, é uma reunião com os pais. “A gente precisa envolver os homens nos cuidados com as crianças pequenas.”
Cristina acrescenta que a participação do homem em todas as etapas, desde o pré-natal até os cuidados pós-parto, é fundamental. “Essa carga de responsabilidade com a criança sempre foi atribuída à mulher. Esse conceito cultural foi criado porque, antes, a mulher não trabalhava fora e cuidava da casa e da família. Mas hoje é fundamental que a carga seja dividida com o parceiro. É absolutamente necessário que haja esse conceito de parentalidade.”
Valorização
A pediatra Tati Andrade lamenta que a valorização da primeira infância, considerado por ela como de extrema importância, ainda não seja parte de políticas públicas efetivas nos municípios. Ela admite que a maioria ainda tem poucos recursos para a demanda, mas ela acredita ser possível. “O que a gente defende é que a população se envolva. O poder público tem um papel importante, mas é essencial chamar as lideranças, as igrejas de todas as religiões, os jovens”, acredita.
A Semana do Bebê é apenas uma das estratégias do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) para assegurar a atenção adequada a meninos e meninas de até seis anos de idade. A ação faz parte da meta para a valorização da primeira infância para que municípios do Semiárido e da Amazônia Legal consigam alcançar o Selo UNICEF.
Cumprindo as diversas metas propostas, a prefeitura participante recebe, após três anos, um selo que comprova e reconhece o esforço da comunidade envolvida em colocar crianças e adolescentes como uma prioridade.
A Semana do Bebê foi realizada pela primeira vez em 2000, no Rio Grande do Sul. De lá para cá, a iniciativa se tornou uma das metas estratégicas – e obrigatórias – de participação dentro do Selo UNICEF para melhorar a condição de vida de crianças e adolescentes no Semiárido e na Amazônia Legal. Entre 2013 e 2016, período da edição passada do Selo, 761 municípios realizaram a Semana do Bebê – desses, 639 incluíram o evento no calendário oficial das prefeituras.
Além da valorização da primeira infância, as gestões precisam cumprir mais quatro metas obrigatórias para alcançar o Selo, que são viabilizar a volta às aulas; debater direitos sexuais e reprodutivos de jovens; a proteção contra a violência, em especial a redução dos homicídios, e a participação e mobilização de adolescentes.
Ações
Outra ação importante é assegurar uma educação de qualidade para meninos e meninas dessa faixa etária. De acordo com dados do Censo Escolar, do Ministério da Educação, até 2017, o Brasil contava com 116,5 mil escolas de educação infantil e uma cobertura de 8,5 milhões de matrículas para crianças até cinco anos. Mas não basta só isso.
Para a especialista em Educação do UNICEF para o Semiárido, Verônica Bezerra, creches e pré-escolas são ambientes que vão muito além de dar banho, alimentar, trocar fralda. “É isso e muito mais. É preciso um ambiente que se responsabilize pelo estímulo e pelo direito da criança de brincar, de ter experiências diferentes, de propostas cognitivas que auxiliem esse percurso de descobertas tão natural nessa etapa – e essencial para tudo o que vem depois.”
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Para saber como deve ser uma instituição infantil de qualidade, o Selo UNICEF disponibiliza os Indicadores da Qualidade na Educação Infantil. A metodologia usa a autoavaliação escolar para estimular uma gestão mais democrática, envolvendo diferentes agentes da escola, como as próprias crianças, professores (as), gestores (as), funcionários (as), familiares e representantes de organizações locais, entre outros.
A autoavaliação envolve sete dimensões: planejamento institucional, multiplicidade de experiências e linguagens, promoção da saúde, infraestrutura, interações, formação e condições de trabalho dos (as) professores (as) e demais profissionais e cooperação e troca com as famílias e participação na rede de proteção social.
As famílias, aliás, têm papel fundamental no desenvolvimento das competências dessas crianças. “A participação dos cuidadores nesses primeiros anos de vida – e da família como um todo – é vital. A criação do vínculo afetivo entre a criança e a família é como um alimento, é o alimento do cuidado, da proteção, do carinho, do amor. Isso é importante para o desenvolvimento da criança do ponto de vista emocional, social e da consciência crítica”, avisa Cristina.
O Selo
Implantado pela primeira vez em 1999, no Ceará, o Selo UNICEF já contabiliza 20 anos de história e de mudança na vida de milhões de crianças e de adolescentes em situação de vulnerabilidade no Semiárido e na Amazônia Legal. Atualmente, 18 estados são alcançados pela ação – Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe e norte de Minas Gerais, no Semiárido, e Acre, Amazonas, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, na Amazônia Legal.
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Com o sucesso das experiências, o Selo cresceu e, hoje, procura aplicar o aprendizado das edições anteriores aos participantes da atual. A metodologia foi unificada para o Semiárido e Amazônia Legal e introduziu o conceito de Resultados Sistêmicos no lugar de ações, visando dar sustentabilidade às iniciativas dos municípios e garantir que as crianças e adolescentes continuem sendo beneficiadas pelas políticas públicas implementadas mesmo após o fim do ciclo.
O Selo é dividido em ciclos, que coincidem com as eleições municipais. No atual ciclo (2017-2020), de 2,3 mil prefeituras convidadas, 1.924 toparam o desafio, sendo 1.280 do Semiárido e 644 da Amazônia Legal. Cumprindo as metas propostas pela ação, o município recebe, após três anos, um selo que comprova e reconhece o esforço da comunidade envolvida.
No ciclo de 2017-2020, os municípios devem apresentar os resultados das ações desenvolvidas até 31 de março, por meio da plataforma Crescendo Juntos, no site do Selo UNICEF. A comprovação das atividades é feita por meio de documentos comprobatórios e anexados no portal. O envio pode ser feito pelo computador, celular ou tablet ou com auxílio de agentes comunitários, caso o município não tenha acesso à internet.