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Um dos legados deixados pela pandemia do novo coronavírus na vida dos brasileiros foi a mudança dos hábitos alimentares. Uma pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), realizada pelo Ibope Inteligência, mostra que 54% dos entrevistados relataram alterações nesse quesito desde o início da pandemia.
Para Taynara Ayres, 32 anos, a mudança foi positiva. Ela conta que era fã de restaurantes fast food e que a frequência com que pedia esse tipo de comida era grande. “Minha alimentação era muito desregrada, eu não tinha um padrão de horário e nem me alimentava bem. Comia muito fast food, sempre gostei, mas hoje como uma vez a cada dois meses, porque realmente gosto, mas não faz mais parte da minha dieta.”
Taynara afirma que inseriu mais frutas e saladas na alimentação e que tem até se exercitado mais. De acordo com a pesquisa do UNICEF/Ibope, intitulada “Impactos primários e secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes”, Taynara está na contramão dos dados, que mostram que o consumo de alimentos industrializados aumentou 29% até novembro. Os alimentos preparados em restaurantes fast food também estiveram presentes em 16% dos lares brasileiros em julho, pulando para 21% em novembro.
Nas casas com crianças e adolescentes de até 17 anos, os dados são ainda mais alarmantes. Durante a pandemia, 36% dos entrevistados residentes com crianças e adolescentes relataram aumento do consumo de industrializados. Além disso, 29% dos entrevistados perceberam aumento no consumo de refrigerantes e bebidas com açúcar, chegando a 34% nas famílias com crianças.
É o caso de Deborah Souza, 34 anos. Mãe da pequena Alice, de 6 anos, a jornalista conta que houve uma “inversão” na dinâmica da casa em relação à alimentação. Diabética, Deborah relata que tinha uma alimentação bagunçada antes da pandemia, chegando a pular refeições por conta da correria do dia a dia. “Por ser diabética, isso afetava minha saúde”, lembra.
Agora, trabalhando de casa, ela conta que a alimentação dela melhorou, mas admite que a da filha nem tanto.
“Sempre tive muita preocupação em relação à alimentação da minha filha. Antes da pandemia, nossa rotina era bem intensa, mas eu conseguia organizar os horários das refeições dela e balancear o máximo possível. Com a pandemia, eu percebi que surgiram dois novos cenários aqui em casa, porque considero que a qualidade da alimentação da minha filha piorou. Apesar de ela comer frutas e verduras diariamente, ela passou a consumir mais industrializados, como biscoitos, sorvete e salgadinhos. E a minha alimentação melhorou. Passei a cozinhar mais e agora tenho uma rotina”, observa Deborah.
A psicóloga infantil Mariana Dias explica que a ansiedade gerada pela necessidade do isolamento social, em meio à doença que já matou mais de 200 mil pessoas só no Brasil, pode ter aumentado a vontade de consumir alimentos industrializados ou ultraprocessados em crianças e adolescentes.
“Esse é um motivo que tem aparecido muito no consultório em função do momento. Por mais que algumas crianças relatem que estão gostando de ficar em casa, elas têm passado muito tempo na frente de eletrônicos – as aulas são pelo computador, os jogos, a socialização – e essa parte é geradora de ansiedade. O alimento industrializado, além de ser mais gostoso ao paladar das crianças, é mais rápido, mais acessível. Em vez de fazer um sanduíche natural, é mais fácil pegar um pacote de salgadinho”, pontua.
Insegurança alimentar atinge 12% das famílias do Nordeste
A professora do departamento de nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Paula Horta explica o que pode estar por trás dessa mudança nos hábitos alimentares. Para ela, a nova rotina nos lares pode ter contribuído para esse novo contexto.
“O primeiro ponto a ser destacado é a dinâmica de home office e dos serviços da casa, o que mudou completamente. O tempo hoje para cozinhar está reduzido e muitas pessoas nunca cozinharam, nunca tiveram essa função dentro de casa. De repente, isso passa a ser uma realidade junto com os serviços domésticos, de cuidar das crianças, enfim. Isso impacta por si só numa mudança na oferta de alimentos”, avalia a docente.
Outro fator determinante, ainda de acordo com a docente da UFMG, é a rotina de ir às compras, seja em um supermercado ou em uma feira livre na cidade. “As pessoas têm ido com menor frequência ou por menos tempo a esses lugares por questões de segurança. E certos alimentos frescos, como frutas, verduras, legumes e hortaliças, precisam ser comprados com uma frequência maior e as pessoas estão comprando menos por conta da pandemia. Por isso, a gente tem uma menor incidência desses alimentos nos cardápios das famílias”, avisa.
Monica Pessoa de Oliveira, de 32 anos, é moradora de Canaã dos Carajás, no interior do Pará. Segundo a empresária, a alimentação no início da pandemia foi mais difícil para ela e para a família. Ela, o marido e as duas filhas – uma de 6 e outra de 12 anos – passavam boa parte na frente da televisão. “Não tinha muito o que fazer. Era só assistir à TV, comer e aí batia aquela ansiedade”, relembra.
Com a abertura do comércio, ainda que mais restrita, Monica diz que a alimentação melhorou. “Elas [filhas] não são muito de comer besteira, mas ainda comem salgadinhos que já conhecem.”
Frutas e verduras nem sempre estão no cardápio das refeições da família. “Nem todos gostam. Claro que é muito importante para a saúde, mas a gente não é de ter esse hábito de comer tudo certinho e regrado. Meu esposo não é fã de salada e fruta, assim como minha filha mais nova. Eu já como mais salada e minha filha mais velha também. Ela come o que tiver na mesa, mas também come mais doce.”
Sobre salgadinhos e doces, que são mais frequentes na casa de Monica, Paula Horta destaca que a exposição das crianças e adolescentes à publicidade infantil também pode incentivar o consumo desse tipo de alimento não saudável.
“Se elas não estão nas aulas virtuais ou em alguma outra atividade desse tipo, elas estão sendo expostas, na maior parte das vezes, à publicidade de alimentos nos meios de comunicação. E aí a gente já tem evidências muito interessantes que mostram como que esses meios de comunicação contemplam na maior parte do tempo os ultraprocessados. E essa publicidade vem acompanhada de estratégias de marketing altamente persuasivas para crianças, com uso de elementos do universo infantil, celebridades, personagens que elas conhecem bastante de filmes, desenhos. Isso tudo está relacionado a um maior desejo por esses alimentos que são anunciados”, lamenta a docente da UFMG.
A chefe de Saúde do UNICEF no Brasil, Cristina Albuquerque, defende uma intervenção mais dura do Estado em relação a essas propagandas. “É muito difícil, é uma competição de política pública de saúde contra os bilhões que são investidos pela indústria, principalmente nos alimentos ultraprocessados. E cada vez isso cresce mais, o País definitivamente precisa dar um basta nisso, estabelecer regras mais rígidas e informar melhor a população”, enfatiza.
Na opinião dela, “as grandes indústrias de alimentos são extremamente competentes, com embalagem atrativa para criança, recheios de biscoitos recheados escorrendo chocolate, muitas cores. Eles são profissionais. Então fica difícil, é preciso uma intervenção do Estado, de limitar, de uma vez por todas, essas propagandas abusivas de alimentos não saudáveis voltadas para crianças e adolescentes. E isso a gente vê que ainda está muito devagar.”
Cristina ressalta que, no ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou um novo modelo de rotulagem nutricional de alimentos embalados. De acordo com a autarquia, a medida visa dar mais clareza e melhorar a legibilidade das informações nutricionais presentes no rótulo dos alimentos, auxiliando o consumidor a realizar escolhas alimentares mais conscientes.
“Dessa forma, as famílias vão poder ver o que estão consumindo, se o alimento tem muito açúcar, se tem muito sal, se a gordura do alimento é ruim. E aí, com essas informações, as famílias podem fazer suas escolhas. A família tem o direito de saber o que está comendo”, frisa.
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