Foto: Mariana Raphael/ Agência Brasília
Foto: Mariana Raphael/ Agência Brasília

O brilho em meio ao caos: como o Samu vem atuando em meio à maior crise sanitária do século

O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência completa 15 anos em 2020 e contabiliza histórias de sucesso. A reportagem do Brasil 61 acompanhou, com exclusividade, a rotina de uma equipe do DF no transporte de pacientes com covid-19, diretamente da ambulância

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“Quando a USA chega, é para brilhar. Ela chega como estrela.” As palavras da enfermeira Ana Paula Yung, 49 anos, definem o que o trabalho dentro da Unidade de Serviço Avançado (USA) representa para ela. Nascida mineira, a profissional da saúde mora hoje no entorno do Distrito Federal (Valparaíso de Goiás) e atua na região administrativa do Gama, distante 34 km do Plano Piloto, sede do poder local e federal. São 11 anos dedicados a correr contra o tempo para salvar vidas e contar histórias – e isso ela tem de sobra. “Aqui é minha primeira casa”, decreta.

A unidade do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu 192) à qual Ana Paula se refere é considerada avançada por ter um médico compondo a equipe e para atender pacientes em casos mais graves. As demais são consideradas básicas, usadas em atendimentos de menor complexidade. De acordo com dados da Secretaria de Saúde do DF, o Samu tem hoje 30 unidades de suporte básico e oito de suporte avançado.

A frota distrital conta ainda com 20 motolâncias, utilizadas para chegar mais rapidamente ao local do acidente e iniciar os procedimentos até a chegada da ambulância, e um helicóptero compartilhado com o Corpo de Bombeiros do DF, que prioriza atendimentos de longa distância, múltiplas vítimas, vítimas presas em ferragens e atendimentos que exigem mais velocidades, como infartos e Acidente Vascular Cerebral (AVC). 

No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, 3,7 mil unidades móveis estavam habilitadas até julho deste ano. Desse total, 3,4 mil são ambulâncias, que cobrem cerca de 3,8 mil municípios espalhados por todo o Brasil. São mais de 177 milhões de pessoas alcançadas com o atendimento.

Assistência à população 

“Só o usuário que precisou do serviço do Samu sabe o quanto ele é importante”, crava o diretor do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência do DF, Alexandre Garcia. Doutor Garcia, como é conhecido entre a equipe, revela que o sistema recebe cerca de um milhão de ligações por ano. Dessas, 275 mil vão parar no telefone dos médicos da corporação. “Na ligação, eles orientam de alguma maneira ou fazem uma intervenção”, explica. 

E são dessas ligações para os médicos que surgem os trabalhos para o Samu. Por ano, são realizados cerca de cinco mil transportes e remoções de um hospital para outro e 75 mil intervenções no próprio local do acidente ou ocorrência. “Todo ano, entre 75 e 80 mil pessoas são atendidas pelo Samu”, contabiliza o diretor. 

 

 

Em um cenário de crise global na saúde, causada pela pandemia do novo coronavírus, Garcia assegura que o trabalho do Samu ficou mais evidente. “As pessoas que precisam do serviço estão usando-o e as pessoas que têm dúvida sobre o coronavírus também, embora o número de ligações não tenha aumentado tanto”, revela o médico. Em março e abril, o número passou de 75 mil para 60 mil. 

Garcia atribui essa estabilidade ao serviço conjunto com a Secretaria de Segurança Pública por meio do Telecovid, que, até maio, já tinha registrado 8.518 ligações de cidadãos com dúvidas ou buscando orientação sobre a covid-19. “As ligações são para orientar as pessoas para se acalmarem, para evitarem espaços públicos, para o uso adequado de máscaras e álcool em gel”, enumera. 

“No entanto, o número de intervenções aumentou. A gente fazia em torno de 300 transportes por mês. Em junho, foram 513 – metade foi de pacientes com covid”, pondera o diretor do Samu no DF. 

Unidades renovadas

A frota do DF foi renovada no ano passado. Essa renovação é feita pelo Ministério da Saúde a cada cinco anos, segundo o médico do Samu, mas as unidades do DF foram trocadas pela Secretaria de Saúde local. As manutenções estão em dia e todas possuem seguro e GPS, para que as unidades de controle acompanhem a viagem, caso necessário. “As viaturas mais antigas que temos são de 2018”, comemora Garcia.

“Os equipamentos são preconizados pelo Ministério da Saúde, eles são perfeitos. Temos até algo a mais para oferecer aos pacientes”, orgulha-se o médico. Contudo, as distâncias são os grandes limitantes. “A gente distribui as 38 viaturas em pontos espalhados pelo DF. Temos 18 pontos que servem para diminuir o que chamamos de tempo/resposta.” 

O número de viaturas depende de critérios do Ministério da Saúde. Cada carro com médico (a) e enfermeiro (a), a chamada Unidade de Suporte Avançado, é direcionado para atender, em média, 450 mil habitantes. Uma de suporte básico, com condutor (a) e técnico (a) de enfermagem, atende entre 100 e 150 mil habitantes. “O DF, que tem em torno de três milhões de habitantes, é contemplado com as oito avançadas e 30 básicas. Aos olhos do ministério, esse dimensionamento é correto, mas a gente sente falta de um pouco mais”, confessa. 

 

Frente à frente com o coronavírus

A reportagem do Brasil 61 acompanhou um plantão de uma ambulância do Samu no dia 23 de julho, das 7h às 19h, e conta como foi a experiência. 

Ocorrência 1

O plantão da equipe do Gama pela manhã começa às 7h. O Samu trabalha em esquema de plantão – são 24 horas, sete dias por semana. A enfermeira Ana Paula Yung é quem “comanda” a viagem. A experiência permite o cargo. Mãe de três filhos – dois do coração, como ela mesma afirma –, Yung divide agora todo o tempo disponível entre a mãe idosa, que mora com um irmão, e os pacientes que conhece no dia a dia. “Meus filhos já são todos criados. Só vou para casa para comer e dormir”, diverte-se. 

Em tempos de covid, a rotina começa com a lavagem da ambulância. A limpeza é feita a cada troca de paciente, intensificada nessa pandemia. Alguns hábitos, como usar máscaras e luvas, foram somados ao uso de capotes, face-shield (máscara-escudo) e roupas mais fechadas, para evitar qualquer tipo de contaminação. Dentro do centro de controle da região administrativa, funcionários tiveram que se adaptar às mudanças impostas pela pandemia. “Antes, entrávamos e saímos pela porta da frente. Agora, ao chegar de uma ocorrência, precisamos passar pela porta de trás, deixar os macacões, botas, tudo aqui, antes de entrar”, revela o médico Hítalo Ferraz, 34 anos, que acompanhou a reportagem durante a viagem. 

Macacões e coturnos são deixados em um lugar especial para evitar contaminação/ foto: Brasil 61

Com tudo pronto e todos devidamente paramentados, o tablet com as ocorrências já está ativado e devidamente logado com os nomes dos integrantes de cada equipe. Dentro da única USA disponível para o Gama, que também atende a região vizinha de Santa Maria (DF), vão a enfermeira Ana Paula, o médico Hítalo Ferraz e Paulo Roberto, 46 anos, condutor do carro. 

Antes de o tablet apitar com alguma ocorrência, Yung faz o check list diário dentro da viatura. Minuciosamente, a enfermeira verifica cada item que pode se tornar necessário para salvar vidas. Ela examina os aparelhos que auxiliam na respiração de pacientes com covid, os remédios necessários para sedação ou para aliviar a dor de quem aposta no serviço móvel. “O médico vai dizer se precisa intubar ou não. Se ele disser que vai, o enfermeiro vai perguntar para ele qual o número do tubo”, adianta. Ao contar sobre o trabalho essencial da enfermagem, Yung vai listando cada passo a ser tomado em uma decisão tão séria como a de intubar o paciente. “Não é chegar e ‘vamos improvisar’. Não! É tudo preparado antes”, frisa a profissional. “Muitas vezes a gente improvisa? Improvisa, mas se não estiver tudo funcionando corretamente, a USA não vai brilhar.”

O tablet apitou. É hora de correr. A equipe entra no carro e segue em direção ao Hospital Regional do Gama (HRG). As demandas são filtradas e distribuídas pela central de controle geral, localizada no Plano Piloto e comandada pelo diretor Alexandre Garcia. A primeira ocorrência do dia é o transporte de um paciente em estado grave, acometido pela covid-19. Dentro da ambulância, a expectativa é de mais um dia de surpresas – algumas boas, outras nem tanto. 

São 8h05. A ambulância estaciona em uma entrada do hospital reservada somente para pacientes com o novo coronavírus. No DF, até a data dessa ocorrência, já eram mais de 92 mil casos confirmados da doença e 1,2 mil mortos. Segundo dados do Painel Covid, lançado pela SES-DF, o Gama registrou quase 4,5 mil casos até 25 de julho – 76 vidas foram ceifadas até então. 

O paciente a ser transportado tem 42 anos e está em um dos boxes de emergência do HRG. Ele está intubado e instável, o que faz com que a equipe do Samu e a do próprio hospital demorem mais de uma hora até que possa ser transportado dentro da ambulância. O trabalho é delicado e inspira cuidados. A vítima não apresentava nenhuma comorbidade. No dia da transferência para um leito de UTI, o paciente completava cinco dias de intubação. 

O enfermeiro Edmar Teixeira, 30 anos, é quem auxilia a equipe do Samu na ocorrência. No local com seis leitos de urgência, Edmar revelou já ter 13 pacientes em estado grave. “A gente tem que fazer gambiarra”, alerta o enfermeiro. “Se as pessoas vissem essa realidade, acho que daria um choque nelas”, observa.

Com o paciente estabilizado, é hora de levá-lo para a ambulância. Hítalo Ferraz adianta que a covid-19 tomou 75% do pulmão do paciente. “A doença é nova, não sabemos se ele recupera a capacidade do pulmão”, lamenta o médico. O condutor da ambulância, Paulo Roberto, ajuda em todo o processo. Ele sempre está ao lado da enfermeira e do médico, auxiliando no transporte e remoção dos pacientes. “A gente auxilia e conduz também. Eu gosto do serviço, é muito gratificante. A gente ajuda as pessoas, né? É muito bom”, comenta, com jeito tímido e manso, que contrasta, muitas vezes, com a rotina pesada.  

Já são quase 10h. A demora em estabilizar o paciente faz o médico Hítalo promover o paciente de grave para gravíssimo. “Pode ligar a sirene, Paulo”, avisa. Uma certa tensão toma conta do carro. O jeito mais tranquilo de dirigir a viatura dá lugar a um condutor de olhar mais preocupado e a ambulância parece ganhar asas quando ele acelera rumo ao Hospital das Forças Armadas (HFA), hospital militar de Brasília. 

Após quase uma hora entre os trâmites de remoção, a família chega apreensiva em busca de notícias. Com as informações repassadas, a unidade móvel parte para a primeira descontaminação e troca de equipamentos de proteção individual (EPIs), que ocorre cada vez que um paciente contaminado é transportado ou removido. 

Ocorrência 2

Uma breve pausa para esticar as pernas, beber o primeiro copo de água após horas e almoçar rapidamente. É a chance de ir ao banheiro também – não se sabe quando haverá oportunidade. Os momentos de tranquilidade são interrompidos pelo apito do tablet, que recebe as demandas do dia. Agora é a vez de um paciente internado no Hospital Regional do Paranoá (HRPA), distante quase 55 quilômetros do Gama, região de origem da ambulância. 

A vítima apresenta problemas cardíacos e suspeita de covid-19 (no exame de imagem, o pulmão se assemelha a um “vidro fosco”, um dos sintomas de doenças respiratórias, o que pode indicar infecção pelo novo coronavírus), mas está consciente. A ocorrência é considerada de urgência pelos problemas cardíacos do homem, que tem por volta de 60 anos. Ele conversa com o médico, explica a condição, e dali a equipe parte para o Hospital de Base, um dos centros de referência em saúde de Brasília. 

Não há nenhuma certeza de que o paciente conseguirá um leito por lá, visto que ele foi para uma espécie de avaliação. Os médicos do Base observam a condição do paciente, debatem com a equipe do Samu (há todo um processo burocrático por trás dessa “mera” avaliação) e, por fim, decidem pela internação – a situação dele poderia se agravar, ainda mais com a suspeita da doença. 

Com o paciente devidamente internado, é hora de partir para a segunda descontaminação do carro e a segunda troca de EPIs. Com a pandemia, os procedimentos de segurança foram redobrados. Touca, propé, dois pares de luvas, capote, duas máscaras, óculos especiaies ou face shield para proteger também os olhos. Alguns são descartáveis a cada contato com paciente infectado, outros são devidamente higienizados e reutilizados, como é o caso da máscara-escudo. 

E a cada troca e higienização, o olhar de alívio parece surgir em cada rosto, dando oportunidade para troca de gentilezas e de companheirismo. Ao conseguir colocar a máscara sozinha, a reportagem do Brasil 61 foi elogiada. “Conseguiu colocar a máscara sozinha? Brilhou”, brinca o médico Hítalo Ferraz. 
 

Ocorrência 3

Já são 16h45. Ana Paula Yung, Hítalo Ferraz e Paulo Roberto sinalizam que o dia 23 de julho de 2020 foi “atípico”. Na opinião do trio, houve uma certa demora em estabilizar os pacientes, o que é essencial para o transporte, e avisam que são raras as vezes em que eles não retornam para a base, no Gama, entre uma ocorrência e outra. “Normalmente, a gente remove um paciente, volta para a base e fica aguardando o próximo chamado, é até tranquilo. Hoje foi atípico”, pontua Ferraz.

Ana Paula conta que a média de atendimento é entre três e quatro pacientes por dia, devido ao tempo para checar o paciente, estabilizá-lo e transportá-lo com segurança de um lugar para outro. “Mas já chegamos a atender sete”, lembra Yung.  

Dessa vez, a terceira missão da equipe será em Santa Maria, local com quase três mil casos confirmados da doença até a data da visita. A paciente está na UTI do HRG, local já visitado pelo Samu pela manhã. A paciente agora é uma senhora de 91 anos. Segundo relato dos netos, a avó estava firme no distanciamento social. Lúcida e muito ativa, ela não recebia visitas dos familiares desde março, quando a doença despontou no DF. “Por um descuido, ela estava sentada e, ao levantar, quebrou a perna”, conta o neto, que preferiu não se identificar. 

Com os olhos marejados, ele relembra já com saudades as histórias da matriarca e revela a tristeza pelo descaso do sistema de saúde. Um levantamento da Secretaria de Saúde distrital mostra que a taxa de ocupação dos leitos de UTI no DF, na segunda quinzena de julho, já chegava a 91,39% na rede privada e ultrapassava os 76% na rede pública. Na data, dez hospitais da unidade federativa já estavam completamente ocupados. “Demoraram muito para tomar alguma providência. Já são quase 20 dias (a contagem foi feita no dia 23 de julho). Ela chegou com uma perna quebrada e está saindo com covid-19, que pegou dentro dentro da UTI”, critica o rapaz. 

Após uma hora, a equipe sai da UTI do Hospital Regional do Gama em direção ao Hospital Regional de Santa Maria. Com todo o cuidado que a paciente inspira, é colocada dentro da ambulância. A senhora é a segunda paciente do dia a ser “promovida” de grave para gravíssima. Pelo andar do relógio, que já marca quase 18h, o trânsito impede que a viatura siga mais veloz rumo ao centro de saúde. 

O sol já está se pondo. A equipe corre contra o tempo para que a mulher de 91 anos chegue estável e com vida após a transferência de hospitais. A família vem logo atrás, com um misto de tristeza com esperança. “Está nas mãos de Deus. Não estamos preparados”, diz a neta, enquanto as lágrimas correm pelo rosto. “Ela estava lúcida. Minha mãe ligou para ela esses dias e ela perguntou por mim, sabia o nome de cada um dos filhos e netos. Agora a rotina dela mudou toda”, diz, ainda inconformada. 

Hítalo deixa a paciente e tenta tranquilizar os parentes. “O estado dela é gravíssimo, mas ela já está na UTI e sendo cuidada.” Agora, está nas mãos dos médicos – para os familiares, as mãos de Deus também vão ajudar. 

Quase 19h. A ambulância vai agora passar pela última descontaminação antes do próximo plantão, que começa em poucos minutos. A troca final de equipamentos do dia revela os rostos marcados pelas máscaras, que muitas vezes apertam, incomodam, machucam. Com essa dor, é possível se acostumar. Faz parte do ofício. Mas a dor de lidar com um inimigo invisível, que já separou do convívio tantas famílias, com essa ainda não aprendemos a conviver. 

“Sempre vai ter alguém esperando pelo paciente em casa. Eu tento fazer o melhor dentro das condições que a gente tem. Sempre tento transportar o paciente com segurança e estabilidade para que ele não corra riscos”, externa o médico Hítalo Ferraz. Ele, que ainda é um “calouro” no Samu – está há menos de um ano na corporação –, acredita que a união da equipe é capaz de superar qualquer obstáculo de tempo. Ana Paula Yung reforça isso. 

“Ali não é só um paciente. É o amor de alguém, é um pai, uma mãe, é alguém especial.” O transporte e remoção de amores é apenas uma das funções das equipes do Samu. Elas brilham mesmo.  

Do transporte à emergência

Aos 36 anos, a enfermeira Hauanne Calasans já viu de tudo um pouco. Esse ano, ela completa sete anos exercendo a profissão que ela aprendeu a amar. “Na época, eu não tinha muita opção, pelas condições. Fiz o curso, mas aprendi a amar, eu amo a minha profissão”, derrete-se ela, que atua há 15 anos também como técnica de enfermagem. 

Hauanne não é só técnica e enfermeira. Ela também é mulher, filha e mãe de duas crianças – um menino de quatro anos e uma pequena de dois anos. A dupla é imbatível e divide o tempo da enfermeira entre as músicas infantis e o socorro com os pacientes no Hospital Regional da Samambaia (HRSAM), a mais ou menos 30 quilômetros do Plano Piloto (DF). 

A clínica médica, onde ela trabalha hoje, tinha uma rotina completamente diferente da realidade de hoje, diante da pandemia de covid-19. “Antes dessa loucura toda, o perfil dos pacientes que atendíamos era de pessoas totalmente dependentes, acamadas, com doenças crônicas. Grande parte era de idosos com sequelas de AVC, jovens com algum trauma e que, por isso, ficaram sequelados”, elenca. “Até então, a gente achava que trabalhava no limite”, relembra. 

Após o número de casos disparar no DF e na região administrativa de Samambaia – até o dia 25 de julho, seis mil casos foram registrados –, esse perfil foi por água abaixo. “O perfil do hospital inteiro mudou. A gente nunca sabe qual é o nosso limite até chegar ao limite”, desabafa. O centro de saúde era dividido em alas e cada uma com uma especialidade diferente. Com o advento da pandemia, a unidade atende basicamente pacientes acometidos pelo novo coronavírus. 

“O que antes eram casos isolados, agora se transformou em uma realidade inacreditável”, conta. Todo o hospital agora só recebe pacientes com a doença. “Eu não acreditava que a gente fosse chegar a esse nível. Pensava que poderiam acontecer alguns poucos casos. Foi gradativo, mas muito rápido. O que tínhamos antes acabou”, diz Hauanne.

Ela aproveita para ressaltar a importância do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem mostrado a importância de se democratizar o acesso ao serviço. “É o bom e velho SUS fazendo milagres em um momento como esse. Mas é nesse momento que se mostra a força desse sistema, que é muito bonito apesar de toda a dificuldade. Ele precisa ser valorizado”, clama a enfermeira. “Antes da pandemia, a gente tinha que matar um leão por dia, agora são dois. Valorizem os profissionais da saúde e o SUS.”

Ela critica a atuação do governo local e federal diante do cenário da maior crise sanitária global do século. Os profissionais na linha de frente estavam sendo testados a cada 15 dias, procedimento que foi suspenso de uma hora para outra. “Muitos colegas testaram positivos e não apresentaram nenhum sintoma. Eles podem infectar todos à volta, isso é uma falha muito grande, a meu ver, o que aumenta o tempo de afastamento dos profissionais”, endossa. 

Calasans adverte, ainda, para a decisão federal de colocar a economia acima de vidas. “Falar sobre isso pode até ser fácil para mim, que sou servidora pública e tenho meu dinheiro garantido todo mês. Eu entendo que é difícil a situação de quem precisa trabalhar fora, do autônomo, do dono do bar, do dono da escola, mas a decisão de reabrir tudo foi precipitada. A impressão que tenho é que as pessoas colocaram mesmo o dinheiro acima de tudo, inclusive da vida. O reflexo está aí”, lamenta, lembrando que o Brasil ultrapassou a marca de 2,3 milhões de casos positivos da doença e chora os mais de 85 mil mortos. “É fato, a vida continua. Mas para muitos não continuou.”

Nesse momento, a saúde psicológica também fica afetada. “A gente também tem medo. Tem medo de se contaminar, contaminar as pessoas da família. Alguns têm a chance de ficar em locais afastados, como hotéis, mas não é o meu caso”, avisa. Ela mesma já ficou afastada do trabalho, alegando estresse causado pelo colapso na saúde. 

“Torço para que as pessoas voltem a ter aquela comoção do início da pandemia. Muitos estão passando fome, sem emprego. Então, se cada um fizer sua parte, ajudando o próximo e ficando em casa, em segurança, as coisas podem ser diferentes”, conclui a enfermeira, ainda otimista à espera de uma vacina e de dias melhores. 

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