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Há mais de um século nós descobrimos que o saneamento é o conjunto de medidas que visa preservar ou modificar as condições do meio ambiente com a finalidade de prevenir doenças e promover a saúde. Mais do que isso, descobriu-se que o acesso ao saneamento básico melhora a qualidade de vida dos indivíduos de uma população, aumenta a produtividade e reflete de maneira positiva na situação econômica da região. Mas você sabe o que é saneamento básico? E se ele é tão importante assim, por que metade dos brasileiros não têm acesso a ele?
O saneamento básico é conjunto dos serviços, infraestrutura e instalações operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais. No Brasil, ele é um direito assegurado pela Constituição e definido pela Lei nº. 11.445 de 2007. No entanto, sua deficiência é gritante e constantemente apontada, principalmente em momentos como este, da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus.
O conceito de saneamento surgiu em países como França e Inglaterra e são condicionantes ao status de uma nação desenvolvida. Isso porque serviços de acesso à água potável e à coleta e ao tratamento dos esgotos, principalmente, levam à melhoria da qualidade de vidas das pessoas, sobretudo na saúde Infantil com redução da mortalidade infantil, melhorias na educação, na expansão do turismo, na valorização dos imóveis, na renda do trabalhador e na despoluição dos rios e preservação dos recursos hídricos. Isso para citar apenas alguns fatores.
Na grande Roma, os encanamentos serviam de fonte pública, os sumérios construíram sistemas de irrigação em terraços e egípcios faziam controle de fluxo da água do rio Nilo. Muitos desses conhecimentos, no entanto, se perderam com o fim dos impérios e a população europeia sofreu com a falta de cuidados na Idade Média. Nesse período, a responsabilidade de gerenciar a água deixou de ser do governo e passou a ser coletivamente dos cidadãos. Parte do consumo de algumas famílias era garantido por meio de compra transportada por carregadores. Já outras, em sua maioria, escavavam poços dentro de suas casas, próximas a fossas e esterco de animais, causando contaminação.
Essa prática causou a proliferação em massa de doenças como cólera, lepra e tifo em um período de grandes epidemias. Na época, a peste negra, transmitida através da pulga de ratos, infectou metade da população e dizimou cerca de um terço da população europeia. Na China e na Índia o panorama não foi diferente, mais de 23 milhões de pessoas foram levadas a óbito em menos de 12 anos.
O historiador André Mota, professor associado do departamento de medicina preventiva da faculdade de medicina da USP, conta que a mentalidade em relação ao assunto só muda quando é criada a medicina social, entre o Século XVIII e o Século XIX, em países como Alemanha, França e Inglaterra, e mais ainda quando se começa a discutir, entre os especialistas franceses, a medicina urbana que, de fato, leva finalmente aos conceitos de saneamento.
“A partir dali começam a se preocupar com as águas, separar as águas. Águas que são utilizadas para lavar cavalos, para lavar roupas, aquelas utilizadas nas primeiras indústrias, água que as pessoas tomam. Ali, começou-se a fazer essa separação”, conta o historiador.
Como consequência da cólera, que devastou a vida de 180 mil pessoas na Europa entre 1840 e 1860, John Snow estudou a origem dessa doença em Londres e comprovou a infecção pela água contaminada. Segundo André Mota, o médico inglês comprovou que as pessoas sem saneamento básico estavam bem mais expostas a doenças.
“Onde você tem água encanada, condições de saneamento básico mínimos, consegue ter impactos mínimos contra a epidemia. Então ele faz o enquadramento da cidade e consegue perceber que justamente onde o saneamento não está presente a possibilidade dos surtos epidêmicos e das epidemias, quando elas ocorrem, se dão de maneira muito mais impactante, mortal”, explica.
A visão higienista tornou-se dominante ao final do século XIX. Na França, implantou-se a medicina urbana. Seu objetivo é planejar os espaços das cidades, disciplinando a localização de cemitérios e hospitais, arejando ruas e construções públicas. As ações tiveram impacto em todo o mundo, inclusive por aqui.
O primeiro registro de saneamento no Brasil ocorreu em 1561, quando o fundador Estácio de Sá mandou escavar o primeiro poço para abastecer o Rio de Janeiro. Mas o país só entrou para valer no mapa do saneamento em 1620. Nesse período, iniciou-se as obras do aqueduto do Rio Carioca para abastecimento da capital. O empreendimento, primeiro sistema de abastecimento de água brasileiro, foi entregue à população somente em 1723.
Durante a história do saneamento no Brasil existiram fatores que dificultaram o progresso ao longo dos anos. Os obstáculos impediram e ainda impedem o desenvolvimento necessário para atingir a maioria da população, diferentemente da maioria dos países desenvolvidos.
Entre os maiores problemas estavam a falta de planejamento adequado, insuficiência de verbas, deficiência na gestão das companhias de saneamento e baixa qualidade técnica dos projetos. O panorama só começou a mudar a partir dos anos 1940, quando se iniciou a comercialização dos serviços de saneamento. Foi também quando surgiu as autarquias e mecanismos de financiamento para o abastecimento de água, com influência do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), hoje denominada Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).
Em 1971, foi instituído o Plano Nacional de Saneamento (PLANASA). Outro grande obstáculo que existiu durante anos foi a disputa entre governos federal, estadual e municipal sobre quem deveria gerenciar essas diretrizes. O embate foi decidido apenas em 05 de janeiro de 2007, com a sanção da Lei Federal nº 11.445, chamada de Lei Nacional do Saneamento Básico – LNSB. Os municípios conquistaram a titularidade e foram estabelecidas as diretrizes nacionais para o saneamento básico no Brasil.
Cada indivíduo deve ter, por dia, acesso a algo em torno de 150 litros de água para ter seus cuidados básicos e qualidade de vida garantidos. Boa parte dessa água entra para limpeza e higiene e sai como esgoto doméstico.
É preciso ter um manancial que supra essa quantidade de água, é preciso processar essa água para que ela tenha condições de ser potável e chegue com qualidade, já que ela será usada, entre outras coisas, para beber e lavar alimentos, e, finalmente, meios para que se possa levar a água até os domicílios.
Já o esgoto, quando não devidamente retirado das cidades e tratado corretamente, é despejado próximo das moradias, o que pode transmitir diversas doenças. Especialistas da China e da Holanda detectaram o novo coronavírus em esgotos e acreditam que pode haver transmissão nestes casos, embora mais testes neste sentido ainda estejam sendo feitos.
“Esse esgoto passa a conter uma série de elementos contaminantes, organismos patogênicos que devem ser carreados para fora dos domicílios, ser tratado, e retornar, com a água devidamente tratada, para o meio ambiente”, explica Ricardo Silveira, ex-professor da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em saneamento.
Segundo o especialista, os resíduos sólidos, ou seja, o lixo produzido em casa, também deve ter uma destinação adequada ou pode interferir no saneamento. “O manejo das águas pluviais igualmente, já que elas podem causar enchentes e transmitir doenças, como a leptospirose, por exemplo”, alerta.
O tratamento de esgoto no Brasil é feito em cinco etapas. Toda a água que é usada no dia a dia da casa, em torneiras e vasos sanitários, segue para as Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs), espaços projetados para realizar as diferentes etapas desse tratamento.
O primeiro processo é o Gradeamento, que retém os materiais mais grosseiros, como o lixo. Em seguida vem a Desarenação, quando o esgoto segue para a caixa de areia, onde é realizada a remoção de todos os detritos sólidos presentes nele e que possam ter escapado ao processo anterior, mediante sedimentação. Todo o líquido que sobra, então, vai para o Tratamento Biológico, onde é exposto à ação de seres microscópicos que promovem reações bioquímicas e eliminam bactérias danosas. A penúltima etapa é a Decantação, quando um lodo é formado no fundo do tanque, separando-se da parte líquida, que já está livre de impurezas. Esse subproduto restante é usado na agricultura. Por fim, há o Descarte. O esgoto clarificado e corretamente tratado é devolvido para o meio ambiente, de onde futuramente a água será novamente captada, reiniciando o ciclo.
O instrumento que norteia a condução das políticas públicas, metas e estratégias para o setor de saneamento hoje é o PLANSAB (Plano Nacional de Saneamento Básico). Entre os órgãos responsáveis pelo monitoramento dessas leis e diretrizes estão ANA (Agência Nacional de Águas), órgão responsável pelo gerenciamento de recursos hídricos, e SNIS (Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento).
Atualmente 83,3 % da população brasileira é atendida com fornecimento de água tratada, o que significa que 35 milhões de brasileiros ainda não possuem acesso a este serviço. De acordo com dados fornecidos pelo Instituto Trata Brasil, o caso mais grave é a coleta de esgoto, que não chega a 49,7% dos brasileiros, o que significa mais de 100 milhões de pessoas sem acesso a este tipo de serviço.
O PLANSAB prevê a expansão dos quatro pilares que envolvem o saneamento básico no país, o abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e drenagem das águas pluviais urbanas, e possui o horizonte de 20 anos. Isso quer dizer que se espera para 2033 que toda a população brasileira tenha acesso a esses serviços.
O Plano estabelece metas de curto, médio e longo prazos. Dentre as principais cabe destacar o alcance de 99% de domicílios abastecidos por rede de distribuição ou por poço ou nascente, com canalização interna, sendo 100% na área urbana, de 92% de domicílios servidos por rede coletora ou fossa séptica, sendo 93% na área urbana, de 100% da coleta direta de resíduos sólidos dos domicílios urbanos, e de 100% de domicílios com renda de até três salários mínimos mensais que possuem unidades hidrossanitárias.
A estimativa de investimento em 20 anos para execução das metas é de aproximadamente R$ 508,4 bilhões. Os recursos, segundo previsão do Plano, devem ter como fontes os Agentes Federais (59%), além de governos estaduais e municipais, prestadores de serviços públicos e privados, organismos internacionais, dentre outros (41%).
O Plano é avaliado anualmente e revisado a cada quatro anos, preferencialmente em períodos coincidentes com os de vigência dos Planos Plurianuais (PPA) do Governo Federal.
Segundo Wanderley Gomes da Silva, coordenador da comissão de vigilância e saúde do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o PLANSAB deve resolver boa parte dos problemas, mas se reunir um conjunto de gestos, políticas e iniciativas, entre elas a educação da sociedade quanto à importância do saneamento. O especialista acompanhou todo o processo da criação do plano e, como sabe que o país é carente na área de planejamento, espera que agora haja o envolvimento político necessário pra que as metas sejam atendidas.
“É importante que o governo entenda que a Lei Federal nº 11.455, no seu sentido mais amplo, seja entendida como política de estado. É preciso ter vontade política, planejamento político e investimento político. É você fazer constar isso no Plano Plurianual, fazer constar no Plano Diretor, no próprio plano de saneamento municipal, estadual.”
Segundo Wanderley, o investimento no saneamento é necessário principalmente para sanar um dos problemas mais sérios do país, que é a saúde, ainda mais agora em momento de pandemia, quando se lembra a importância do abastecimento de água e a coleta adequada de esgoto no intuito da prevenção.
“Nós precisamos de saneamento. Precisamos que o Estado brasileiro se faça presente na política de saneamento básico. Garantir saneamento básico é garantir saúde. Onde há saneamento básico há baixíssima incidência de doença, os postos de saúde não ficam superlotados e há pouca exigência da política curativa, ou seja, o saneamento é o coração pulsante da política preventiva de saúde desse país.”
Considerando o avanço gradativo do saneamento por meio do PLANSAB, acredita-se que o Estado vai economizar após esses 20 anos, seja pelos afastamentos do trabalho, seja pelas despesas com internação no SUS, algo em torno de R$ 6 bilhões por ano. Além disso, garantir a saúde física, emocional e social da totalidade dos cidadãos brasileiros, assim como a Constituição preconiza.
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