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Foi sancionado, no último dia 30, o decreto que institui a Política Nacional de Educação Especial (PNEE). O documento prevê educação “equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida.” A proposta interministerial, das pastas da Educação e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, visa ampliar o atendimento educacional especializado aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação.
De acordo com a PNEE, o objetivo é incentivar estados, Distrito Federal e municípios, em colaboração com a União, a implementar programas e ações que garantam o direito à educação e ao atendimento educacional especializado para esses alunos. A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, classificou a sanção como uma “vitória”. Para ela, que costuma fazer aparições discursando na Língua Brasileira de Sinais (Libras), a Política Nacional “representa um passo significativo desse governo rumo a um país mais justo e com igualdade de oportunidades.”
Em nota enviada à reportagem do portal Brasil61.com, o MEC afirma que “um dos princípios fundamentais é o direito do estudante e da família na escolha da alternativa mais adequada para a educação do público-alvo desta Política. O objetivo é garantir aos estudantes com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades uma formação integral.”
Uma das promessas do texto é inserir alunos da educação especial em espaços mais voltados para isso, com infraestrutura considerada acessível – as chamadas classes especializadas. A repercussão, no entanto, não foi como o governo esperava. Ao ser sancionada, a PNEE recebeu duras críticas de setores que defendem a educação inclusiva e de membros do Legislativo.
A bancada do PSOL na Câmara dos Deputados, liderada por Sâmia Bomfim (PSOL-SP), protocolou, na última sexta-feira (2), um projeto de decreto legislativo para sustar a PNEE, alegando que o texto presidencial propõe a separação em salas e escolas especiais de crianças com deficiências, transtornos globais de desenvolvimento e superdotação.
A política, segundo o PSOL, apresenta violação de dispositivos constitucionais (art. 205) e infraconstitucionais, como a Convenção da ONU Sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que garantem a essas pessoas o pleno acesso à educação.
Para a bancada, trata-se de um “retrocesso enorme.” Segundo o texto, a proposta do governo altera o atendimento educacional em classes e escolas especializadas, “propiciando, assim, uma volta a um modelo malsucedido de categorização e segregação de pessoas, o que contraria os diplomas legais supracitados e é amplamente repudiado por aqueles e aquelas que defendem uma educação efetivamente inclusiva, avessa a toda forma de discriminação”.
Sobre isso, o MEC respondeu, em nota, que a iniciativa “amplia a área da educação especial, oferece aos sistemas educacionais possibilidades de criar alternativas educacionais além das escolas comuns inclusivas, como escolas e classes especializadas, escolas e classes bilíngues de surdos, amplia alternativas para viabilizar o atendimento educacional especializado como uma diretriz constitucional.”
Autora do blog “Lagarta Vira Pupa”, a jornalista mineira Andréa Werner divide algumas preocupações em relação à iniciativa governamental. Mãe de uma criança autista, com diagnóstico confirmado em 2010, Andréa observa que, apesar de ter crescido o número de matrículas de alunos com deficiência em escolas regulares, muitos estabelecimentos ainda não estão preparados para isso.
O Anuário Brasileiro da Educação Básica 2020, do Todos pela Educação, mostra que o número de matrículas na educação básica de alunos com deficiência, transtornos do espectro autista e altas habilidades ou superdotação, em classes comuns e classes especiais, passou de 639,7 mil em 2009 para 1,2 milhão em 2019.
Mas ainda está longe do ideal. Em relação à infraestrutura, o estudo mostra que apenas 15,2% das escolas da zona rural possuem sala de recursos multifuncionais. Na zona urbana, esses recursos estão disponíveis em 31,2% dos estabelecimentos. Menos de 30% das escolas da zona rural possuem banheiro adequado ao uso dos alunos com deficiência ou mobilidade reduzida. Na zona urbana, o número sobe para 61% das unidades de ensino.
“A grande maioria das escolas não fez adaptação nenhuma para receber esses alunos, não investiu em formação continuada dos professores, não tem sala de recurso no contraturno e nem profissionais capacitados para fazer adaptações de material ou metodologia. Em outras palavras, se decretou inclusão, mas não se investiu devidamente em inclusão”, avalia Andréa Werner.
A jornalista afirma que é esse cenário que leva muitos pais “desesperados” a buscar escolas especializadas (ou até mesmo a tirar a criança da escola). Para ela, a escola especializada é “território sem lei”, pois não há fiscalização adequada e acompanhamento. E dispara: “no momento em que tivermos o investimento em escolas especializadas, os gestores vão ter a desculpa perfeita para recusar ainda mais as matrículas das crianças com deficiência em escolas regulares. E recusar matrícula dessas crianças é crime”, lembra ela.
O filho de Andréa Werner, considerado autista com grau moderado a severo, não se adaptou à atual inclusão, segundo ela. Ele frequenta escolas especializadas há muitos anos e, mesmo assim, ela conta, ainda não é alfabetizado (ele tem 11 anos). “Isso mostra que esse modelo não necessariamente é a solução para todos os problemas. As políticas de Estado em relação a crianças e adolescentes com deficiência devem ser no sentido de fazer a inclusão acontecer de verdade, com todo o investimento que isso demanda.”
Andréa ainda faz um alerta. Na opinião dela, é preciso fiscalizar de onde sairá o investimento para criar ou equipar as escolas especializadas. “Provavelmente o que vai acontecer é uma terceirização sem o devido controle, inclusive de qualidade, em que instituições privadas vão passar a receber esses recursos do governo. É um prato cheio para desvios e corrupção”, aponta.
Rombo nas contas públicas pode chegar a 3% do PIB
Para a vice-presidente da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) do Paraná, Márcia Baldini, não houve nada “relevante” em relação ao avanço para a educação especial com a PNEE. “O Brasil foi um país que avançou muito nas políticas de inclusão, ao atendimento da pessoa com deficiência. Enquanto educadores, não podemos jamais permitir retrocesso em relação a isso.”
Baldini é também dirigente municipal de Educação de Cascavel (PR) e defende que o texto deveria ter passado por ampla discussão antes de ser construído e sancionado. Ela pontua que a Lei 10.502/2020, que institui a PNEE, é muito abrangente e não contempla as especificidades da educação especial. Para isso, ela cita uma das edições do Manual de Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais, que engloba no transtorno do espectro autista, por exemplo, o autismo, a síndrome de asperger e transtornos sem outras especificações.
“O documento do governo traz simplesmente transtornos globais de desenvolvimento (TGD). Vejo como um retrocesso muito grande que o decreto esteja em desacordo com vários documentos, inclusive com o manual”, lamenta a dirigente.
“Percebe-se que o texto está muito focado na questão de classes especializadas. Temos, hoje, um avanço muito grande de crianças em salas de recurso multifuncional. Se voltarmos simplesmente com as classes especializadas, vamos voltar ao processo de segregação, o que é muito prejudicial para o desenvolvimento da pessoa com deficiência”, diz Márcia Baldini.
E continua. “É preciso garantir a permanência da pessoa com deficiência em qualquer instituição de ensino cumprindo as regras constitucionais e possibilitando, socialmente, o rompimento das barreiras arquitetônicas para que essas pessoas possam ter o direito de ir e vir.”
Procurado pela reportagem, o presidente da Federação Nacional das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae Brasil), José Turozi, afirma que pretende discorrer sobre a PNEE somente após intensa discussão entre as 2,2 mil unidades espalhadas pelo território brasileiro.
“Temos um trabalho bastante diferenciado entre uma Apae e outra. Precisamos analisar o contexto geral do decreto, não posso tomar a liberdade de me pronunciar sem ouvir as nossas filiadas e as 25 federações do Brasil. As Apaes do Brasil sempre foram e são a favor da inclusão, já que, em 2019, incluímos 16 mil pessoas no mercado de trabalho e muitas que passaram pelas Apaes estão em universidades. Por isso, é preciso cautela”, avisa.
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