Data de publicação: 13 de Julho de 2020, 00:00h, Atualizado em: 01 de Agosto de 2024, 19:31h
No último dia 12 de junho, data em que se lembra o combate mundial ao trabalho infantil, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) alertou sobre os riscos de aumento do trabalho de crianças e adolescentes durante a pandemia do novo coronavírus. O problema, no entanto, é antigo e mais triste do que muitos imaginam. O trabalho infantil é uma forma de violência e gera um sem número de acidentes que deixam marcas para sempre em meninos e meninas de todo o país.
Segundo dados do IBGE de 2016, 2,4 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos estavam em situação de trabalho infantil no Brasil. Destes, 1,7 milhão exerciam também afazeres domésticos de forma concomitante ao trabalho ou estudo. De acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), no período entre 2007 a 2019 foram registrados 27.971 acidentes de trabalho com crianças e adolescentes no país.
Fazendo o recorte de acordo com a faixa etária, verificou-se que o maior número de acidentes de trabalho envolvendo este grupo ocorreu em jovens de 14 a 17 anos (96,95%). Tanto na faixa etária de 5 a 13 anos de idade, quanto na de 14 a 17 anos, os maiores percentuais foram encontrados para crianças e adolescentes do sexo masculino, com 725 (85,0%) casos e 22.159 (81,7%), respectivamente. Quanto à variável raça/cor, observou-se os maiores percentuais de pardos (45,0%) e brancos (30,7%) na faixa etária de 5 a 13 anos e de brancos (44,3%) e pardos (25,6%) na de 14 a 17 anos.
Antônio Carlos de Mello Rosa, presidente do Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente do Distrito Federal (FPETI-DF), explica que o trabalho infantil vai desde a criança que trabalha em casa, e não apenas ajudando aos pais nos afazeres domésticos, como também na responsabilidade do lar, realizando tarefas complexas dentro de casa, até os jovens que desempenham atividades na agricultura, bares, feiras, vendas de rua, fábricas, entre outros.
O especialista conta que a legislação que existe no Brasil para coibir o trabalho infantil tem referência internacional, está estabelecida na Constituição e não existe sem critérios. Segundo ele, tudo foi embasado em estudos na saúde do desenvolvimento que deixa claro que as crianças, antes dos 16 anos, têm prejuízo ao seu desenvolvimento físico, psicológico e educacional se submetidas ao trabalho.
“Por exemplo, as ferramentas de trabalho, em geral, são feitas para adultos e não para crianças. Os ossos das crianças ainda estão em fase de desenvolvimento, a pele absorve mais facilmente produtos químicos, as articulações não estão todas desenvolvidas, a visão periférica da criança ainda não é uma visão que se atente ao ambiente como um todo, então, há uma série de fatores que fazem com que esse trabalho não seja propício para elas”, ressalta.
Os males causados
Os efeitos do trabalho infantil são os mais variáveis e, muitas vezes, não são visíveis à maior parte da sociedade. O trabalho pode ser exaustivo, pesado, insalubre e trazer efeitos imediatos para o resto da vida, como intoxicação, amputação e trauma psicológico.
“Na agricultura é muito comum crianças se acidentarem, tanto nos membros inferiores quanto superiores, com objetos cortantes, com enxada, facão e ferramentas em geral”, destaca Antônio Carlos. “Na construção civil, adolescentes normalmente sofrem acidentes relacionados ao contato com produtos químicos e no trabalho doméstico é comum acidentes com queimaduras, objetos pontiagudos e produtos químicos. Já nas feiras, por exemplo, elas carregam peso em excesso e isso é danoso para a estrutura física da criança.”
Dura realidade
Felipe Caetano da Cunha, 18 anos, morador de Aquiraz, no Ceará, começou a trabalhar aos 8 anos e desempenhou diversas atividades, entre elas instrutor em parque aquático e catador de garrafas. Mas foi como garçom de uma barraca de praia que passou a maior parte do tempo, servindo bebidas e pratos, além de cuidar da limpeza. O trabalho era realizado em todos os dias da semana, incluindo finais de semana e feriados. Além de desprotegido contra o sol, diversos acidentes ocorriam diariamente.
“Era muito comum a gente se cortar, se furar. A gente limpava a praça pela manhã, trabalhava o dia todo e à tarde limpava novamente e jogava o lixo fora. Os cestos de lixo de praia são de cipó, muito pesados, então imagina isso para uma criança de dez anos. A espinha de peixe inflama quando fura. Os acidentes de trabalho eram muito comuns”, relata.
Um dos problemas apontados por Felipe atualmente é a falta de preparo dos agentes de saúde, que sabem como resolver a emergência dos acidentes de trabalho em crianças, mas não investigam as causas para enxergar o problema mais além.
“Ocorrem muito no Norte do país situações em que meninos perdem parte do dedo ou da mão e os profissionais de saúde fazem a amputação ou estancam o sangue, mas não notificam a causa daquele acidente”, explica. “Essa falta de preparo gera uma subnotificação enorme. No Disque 100, tivemos um número de mil denúncias em 2019, o que é muito distante de nossa realidade. Temos mais de 2,5 milhões de crianças trabalhando e apenas mil denúncias em um ano. Muitos se deparam com esse problema, mas não falam, não denunciam e isso gera um dado muito distante daquilo que realmente é.”
Marcas invisíveis
Os problemas causados pela exploração do trabalho infantil vão, no entanto, muito além dos danos físicos. O presidente da FPETI-DF alerta que há ainda um acidente que deixa outras marcas permanentes e que muitas vezes é invisível aos olhos de muitos.
“É normal que crianças que trabalham cresçam com traumas psicológicos. Essa questão da saúde mental não aparece tanto quando se fala da questão dos acidentes de trabalho e é uma verdade no que diz respeito à exploração do trabalho infantil”, destaca. “Crianças que trabalham têm maior probabilidade de crescerem com problemas psicológicos e serem adultos com baixa autoestima, entre outras coisas.”
Felipe lembra bem das marcas profundas deixadas quando trabalhou dos 10 aos 14 anos na barraca de praia. Ele acredita que um dos maiores inimigos do combate ao trabalho infantil é o senso comum de que ele só é ruim quando mata. Segundo o jovem, dentro do mercado de trabalho as crianças crescem aprendendo que o cliente tem sempre razão, então, o assédio é muito comum, tanto em cima de meninas quanto de meninos.
“Conheço pessoas que de tão afetadas psicologicamente pelo trabalho infantil são hoje muito duras, muito secas e brutas. Sem contar que têm nível de escolaridade baixo. A morte do corpo é realmente algo ruim, mas eu acredito que a morte dos sonhos das crianças é tão marcante quanto e um dos maiores males causados pelo trabalho infantil”, acentua.
Maior incidência de casos
Ao analisar o número de notificações de acidentes de trabalho por estado, na faixa etária dos 5 aos 13 anos de idade, a região Sudeste apresentou o maior número de notificações (26,7%), seguida da região Nordeste (25,3%). Segundo Antônio Carlos, diferentes variáveis afetam o número de registros e evidenciam uma subnotificação muito séria no Brasil.
“A Região Sudeste no Brasil tem uma densidade populacional maior, com políticas públicas mais desenvolvidas, o que comete um registro maior de acidentes. O Nordeste também tem uma boa densidade populacional e índices de pobreza maiores. Mas esse sistema de vigilância, no que diz respeito a acidente de trabalho, como estudo, carece de um aprimoramento muito forte e os dados não necessariamente refletem a realidade do que acontece no Brasil”, denuncia. “Há uma visão nublada do que ocorre de fato, já que há uma informalidade grande rodeando esse tipo de trabalho”, explica.
O presidente do FPETI-DF, no entanto, faz uma ressalva sobre a pesquisa. “Ter números é melhor do que não ter, essa é a verdade. Pelos recortes racial, etário e de gênero, podemos ter um indicativo de por onde caminhar, o que é bom, por outro lado. Há que se entender que ainda temos muito o que se fazer em termos de clarear essa realidade para estipular políticas públicas que de fato deem conta desse problema”, diz.
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Solução a longo prazo
Segundo Antônio, o problema da erradicação do trabalho infantil no país só se resolverá por meio de uma melhor educação e de políticas públicas que somem esforços, nas mais diversas áreas, para combater, dentre outros problemas, a desigualdade social.
Mesmo depois de todos os acidentes e traumas adquiridos pelo trabalho infantil, Felipe Caetano conseguiu dar a volta por cima e hoje estuda Direito na Universidade Federal do Ceará. O cearense, que também é consultor dos direitos humanos da criança e do adolescente, explica que a proteção desses jovens deveria ser uma questão abraçada por toda a sociedade, já que o problema é intersetorial. Uma criança que trabalha e é abordada pela assistência social demonstra, por exemplo, um problema na coluna, que é uma questão de saúde. Ela provavelmente está fora da escola, quando entra aí a questão da educação. Há, com certeza, privação de acesso a livros, filmes, diversão, brincadeiras e esporte, passando o problema para a cultura.
“A criança não é só da assistência, não é só da educação, não pertence só à família. Esse trabalho de garantia dos direitos humanos da criança e do adolescente tem de ser abordado por toda a sociedade. Tem um provérbio indígena que diz que é preciso de toda uma aldeia para educar a criança”, conclui.